Janeiro Branco: por dentro dos transtornos da mente

Em janeiro acontece a campanha do 'Janeiro Branco', onde se mobiliza a população para conscientizar sobre a importância de cuidar da saúde mental. Atualmente 23 milhões de pessoas, ou 12% da população brasileira, necessitam de algum atendimento em saúde mental. Estima-se que aproximadamente cinco milhões de brasileiros, o equivalente a 3% da população, padecem de transtornos mentais graves e persistentes. Segundo informações da Associação Brasileira de Psiquiatria, apesar de a política de saúde mental dar prioridade às doenças mais críticas, como esquizofrenia e transtorno bipolar, as mais frequentes estão associadas à depressão, transtornos de ajustamento e ansiedade.

Os problemas ligados à saúde mental respondem por cinco posições no elenco das dez principais causas de incapacidade, conforme Organização Mundial de Saúde (OMS). São mais de 400 milhões de pessoas atingidas por distúrbios mentais ou comportamentais em todo o mundo. Muitos países não dispõem de políticas de saúde mental, em prejuízo da população - o Brasil está incluído no universo dos 62% que contam com estas diretrizes.

Na história da humanidade, durante séculos, as pessoas com transtornos mentais foram isoladas do convívio social, muitas vezes trancafiadas nas mais precárias condições. Mesmo com todo arsenal de conhecimentos e tratamentos disponíveis, ainda hoje, os portadores de distúrbios psiquiátricos muitas vezes são tratados com desaprovação e hostilidade.

“O preconceito já foi bem maior, mas ainda existe, o que muitas vezes atrapalha o tratamento, em função dos estigmas alimentado pela própria família, que trata como se fosse mal criada”, ressalta a psicóloga Rosa Garcia, com doutorado em Medicina Interna.

Rosa Garcia afirma que houve uma extraordinária evolução na área da saúde mental, em função dos estudos sobre o cérebro, do desenvolvimento da genética molecular e dos avanços farmacológicos. As pesquisas e investigações científicas permitiram estabelecer descrições clínicas e parâmetros bem definidos de diagnósticos.

De acordo com a Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde (CID. 10), na área de saúde mental existem transtornos orgânicos, transtornos decorrentes do uso de substâncias psicoativas, esquizofrenia, transtorno de humor, transtornos neuróticos, anorexia, bulimia, transtornos de personalidade, retardo mental, entre outros.

 

Distúrbios patológicos

 

 

O psiquiatra Luiz Fernando Silva Pedroso faz um alerta: “o transtorno mental mata se não for devidamente cuidado e controlado”. Ele afirma que as complicações na saúde mental podem levar ao suicídio, à inanição, ao abuso de drogas, a acidentes e a reações de desequilíbrio, violência e desajuste social. “Em geral, quando não se trata precocemente, a doença é realimentada. É necessário buscar atendimento médico tão logo se manifestem reações psicoemocionais recorrentes que fogem à normalidade”, enfatiza o especialista.

A loucura é um tema complexo. “A forma como são encaradas pela sociedade os transtornos mentais é uma questão cultural”, constata o médico psiquiatra Luiz Fernando Pedroso. O tema tem sido algo alvo das mais instigantes reações e abordagens. Em sua obra o filósofo Michel Foucault se referia à mutabilidade dos fenômenos ligados à loucura e da compreensão ao longo dos tempos e das diferentes culturas. Um dos clássicos que mostra a dicotomia entre a razão e a loucura é a célebre obra literária do escritor brasileiro Machado de Assis, O Alienista. Com ironia, o autor transmite a mensagem de que o ‘mal’ não parece estar no ‘racional’ ou no ‘normal’, mas é da natureza humana, em uma crítica às relações de poder.

“Deve-se desconfiar da ‘normopatia’, pois a loucura pode estar escondida na realidade aparentemente normal”, diz o médico psiquiatra Luiz Fernando Pedroso. A natureza do diagnóstico e psiquiatria é diferente de outras especialidades, pois os indicativos da patologia mental não podem ser identificados por exames convencionais e laboratoriais. Os casos são detectados pelo comportamento fora da normalidade social e cultural.

As doenças mentais são distúrbios de saúde que interferem nos sentimentos, pensamentos e comportamento. Os psiquiatras chamam atenção para a importância da adoção das medidas terapêuticas adequadas para cada caso, sobretudo em função de sofrimento que os transtornos mentais causam ao paciente.

O movimento de contracultura nos anos 60 e 70 contribuiu para o radicalismo contestador em relação ao caráter patológico e às condutas preconizadas pela medicina, como o internamento e o uso das terapias clássicas. Na avaliação do especialista, através do tratamento adequado o paciente em crise pode retornar à sua vida produtiva e ao convívio social.

O psiquiatra Luiz Fernando Pedroso desmistifica o uso de recursos com o eletrochoque, “que é aplicado no paciente anestesiado e tem um efeito neuromodulador”. Outra técnica não invasiva empregada para estimular o cérebro de maneira indolor é a estimulação magnética transcraniana, através de um equipamento que cria um campo magnético capaz de gerar alterações de inibição ou excitação da atividade cerebral.

Tratamento e internação

“A ciência não desvendou a origem ou etiologia dos transtornos mentais, mas há fortes indícios de que seus sintomas estejam ligados a um desequilíbrio bioquímico cerebral e sofrem influência de fatores externos”, afirma o psiquiatra Irismar Reis de Oliveira. Ele destaca a importância dos avanços nas terapias farmacológicas, através de remédios melhor tolerados pelo organismo, com menos efeitos colaterais e eficácia satisfatória. 

O professor Irismar explica que as intervenções são individualizadas de acordo com o quadro clínico, que pode ser mais ou menos crítico, estar associado a doenças psicossomáticas e até agregar mais de uma patologia psiquiátrica, entre os diversos aspectos. Na esquizofrenia, por exemplo, o tratamento é basicamente medicamentoso, mas pode beneficiar-se muito de abordagens psicoterápicas específicas. “Em alguns transtornos mentais são empregadas técnicas que melhoram o prognóstico e dão resultados efetivos, a exemplo da psicoterapia cognitivo-comportamental”, acrescenta. 

Desde a aprovação da chamada Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei  20.216/2001), tem sido eliminado o antigo modelo manicomial, marcado pelas internações de longa permanência. Dados do Ministério da Saúde indicam que já foram fechados 17,5 mil leitos em hospitais psiquiátricos públicos e privados e restam outros 35.426 leitos no país. 

A política de saúde mental em vigor está substituindo o atendimento em hospitais psiquiátricos, sobretudo as internações, pelos serviços abertos voltados à assistência comunitária. O modelo atual, entretanto, está longe de atender satisfatoriamente à demanda. 

O cenário atual é de escassez de serviços assistenciais, ausência de políticas de reinserção ao convívio social, falta de locais para internamento quando é necessário, além de famílias sem estrutura para lidar com seu doente. “A reforma da assistência psiquiátrica foi importante para combater a ‘cronificação’ da doença e os hospitais funcionavam como verdadeiros depósitos de pacientes em situação precária”, argumento o psiquiatra Irismar Reis de Oliveira. Mas, em sua opinião, o que aconteceu foi a destruição de um modelo sem a substituição adequada para outro. “Precisamos também de bons ambulatórios e bons hospitais psiquiátricos”, assinala. Na psiquiatria, o internamento é recomendado não como uma maneira de segregar, mas como uma forma de tratar pacientes em crises.