Esquistossomose: uma doença socioeconômica

Cerca de quatro semanas após visitar Lençois, na Chapada Diamantina, um grupo de ciclistas mineiros passou a apresentar sintomas associados à esquistossomose: febre prolongada e intermitente, sudorese noturna, fraqueza, vermelhidão na pele e diarreia. O quadro é clássico da doença em sua forma aguda e, de um modo geral, ocorre em ‘turistas’, ou seja, indivíduos que nunca tiveram contato com o Schistosoma mansoni, parasita responsável pelo desenvolvimento da patologia.

“Pessoas que vivem em áreas endêmicas, com exposição repetida ao verme adquirem uma certa ‘imunidade’ na reinfecção. Na verdade, ela passa a ser uma doença crônica, pois o diagnóstico chega numa fase tardia, com mais idade, na chamada forma hepatoesplênica, com alterações no fígado, baço e aumento das varizes de esôfago, que por vezes se rompem e provocam vômitos de sangue”, revela a infectologista Ana Paula Alcântara, professora da Escola Bahiana de Medicina.

Considerada pela Organização Mundial da Saúde como uma das mais negligenciadas e devastadoras doenças socioeconômicas, perdendo apenas para a malária, sua transmissão é ligada à precariedade de saneamento e tem áreas endêmicas em mais de 70 países, onde 800 milhões de pessoas vivem sob risco de infecção, sobretudo na África. No Brasil, 19 estados apresentam casos, especialmente os da região Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo.

Na Bahia, segundo boletim epidemiológico de 2016, do total de 417 municípios existentes no estado, 128 (30,7%) são endêmicos, 123 (29,5%) focais e 166 (39,8%) indenes para transmissão da esquistossomose. No ano passado, foram notificados, no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), 532 casos de esquistossomose em território baiano, correspondendo a uma  redução de, aproximadamente, 25% em relação ao mesmo período de 2015, quando foram  notificados  703  casos. “A solução para a esquistossomose depende do tripé saneamento, educação e informação”, defende o patologista Mitermayer Galvão, pesquisador da Fiocruz.

O especialista explica que a falta de tratamento do esgoto é, em grande parte, responsável pela contaminação das coleções hídricas, mas outros comportamentos corroboram para a propagação do parasita. “A população precisa aprender a não defecar no meio ambiente e entender que não é preciso ‘tomar banho’ em rios, lagoas etc para ser contaminado. A larva pode penetrar na pele de um pescador enquanto ele trabalha na beira do açude ou da criança que entra na água apenas para pegar um brinquedo”, exemplifica. “Conhecer o caramujo hospedeiro do parasita também é importante, pois sem ele o ciclo do parasita não fecha”, completa.

O médico refere-se ao molusco do gênero Biomphalaria, que abriga os miracídeos (uma das fases evolutivas do parasita). Cerca de 35 dias depois da infestação do caramujo são liberadas as cercarias (outra fase do schistossoma), que penetram na pele humana. “Elas são liberadas no período de maior intensidade de luz. Por isso, o horário de maior risco de contaminação é entre 10h e 14h, justamente quando as pessoas mais recorrem à água para se refrescar”, avisa.

‘Roteiro’ devastador

Assim como os mineiros, um casal de baianos chegou até Dra. Ana Paula 40 dias após terem visitado a Chapada Diamantina. O diagnóstico começou a ser desenhado a partir do resultado do leucograma, que sinalizava um aumento bastante significativo no número de eosinófilos. “Em geral, isso demonstra um resposta imunológica a parasitoses, processos alérgicos e, quando muito elevado, doenças linfoproliferativas. Notamos também aumento do fígado e presença de nódulos no mesmo órgão e nos pulmões. Fizemos o link com a estadia deles naquela região do estado e partimos para a realização do exame parasitológico de fezes pelo método Kato-Katz, que detectou a presença de ovos do parasita”, conta.

As alterações nesses órgãos decorrem do caminho feito pelo verme no organismo humano. Quando a cercaria penetra no homem, ela libera uma enzima para destruir os tecidos da pele humana e conseguir chegar aos vasos sanguíneos. De 6 a 12 dias ela chega aos pulmões, o que leva o indivíduo a apresentar um certo ‘pigarro’. Após 17 dias, elas aparecem na veia porta, que leva o sangue do intestino para ser filtrado no fígado. Ali, macho e fêmea se ‘casam’ e se instalam nas veias mesentéricas no intestino. Entre 35, 40 dias a fêmea começa a produzir ovos. Parte deles sai com as fezes para continuar o ciclo, enquanto outra porção fica retida no intestino e uma terceira é levada pela corrente sanguínea para o fígado. “É como se colocassem diversas pedras numa tubulação. Sem passar pelo fígado, o sangue fica barrado na veia esplênica do intestino, causando aumento do baço. O aumento da pressão na veia porta, por sua vez, gera acúmulo de líquidos no abdômen, provocando a famosa barriga d’água. Por outro lado, o sangue do esôfago também é barrado, provocando varizes, que podem se romper, provocar sangramentos e levar à morte”, explica Dr. Mitermayer.

O estrago pode ser ainda maior se a larva fêmea migrar para a coluna vertebral, o que pode provocar desde uma neurite até uma paralisia. Segundo o pesquisador, a situação é rara, mas acontece especialmente com pessoas que trabalham agachadas. “A posição aumenta a pressão abdominal e isso empurra o sangue com ovos para a coluna. Por isso é importante que se o indivíduo, após visitar regiões endêmicas, notar formigamento nas pernas, dificuldade de locomoção ou, no caso dos homens, de ereção, busque atendimento, pois é provável que esteja fazendo uma neuroesquistossomose. Nesses casos, o paciente deverá passar por fisioterapia, além do tratamento medicamentoso”, alerta.

Tratamento

Apesar da devastação causada pelo parasita, o tratamento, especialmente da forma aguda, é relativamente simples e de efeito rápido. O praziquantel é distribuído gratuitamente pela rede pública de saúde e utilizado em dose única, de acordo com o peso do paciente. “Existem relatos de efeitos colaterais, como dor de cabeça, náuseas, tonturas, mas são reações transitórias. Ainda não sabemos se nossos pacientes terão alguma evolução futura, se apresentarão a forma crônica, mas possivelmente não, pois quem é tratado evita a evolução pras formas crônicas e graves. O prognóstico esperado é bom e de cura”, avalia Dra. Ana Paula.

Outra boa notícia parte da Fiocruz, que há 30 anos trabalha na produção de uma vacina para o combate à esquistossomose. No ano passo, a fundação anunciou uma nova fase de estudos clínicos da vacina brasileira, chamada de Sm14. A vacina será feita a partir de um antígeno, substância que estimula a produção de anticorpos, evitando que o parasita causador da doença se instale no organismo ou que lhe cause danos. A Sm14 será administrada em três doses, com intervalos de um mês entre cada uma. A conclusão e os resultados dos estudos estão previstos para este ano.