Artigo médico: obesidade mórbida configura-se como um grave problema de saúde pública

Preocupação crescente na comunidade de saúde internacional nas últimas décadas, a obesidade, especialmente a obesidade mórbida, configura-se de maneira cada vez mais consolidada como um grave problema de saúde pública, com impactos deletérios tanto sobre a saúde do paciente, quanto sobre os sistemas de saúde em escala global

 

Entre as possíveis abordagens acadêmico-científicas sobre a obesidade, nos chama a atenção o olhar multifatorial, que leva em consideração a premissa de que a obesidade tende a ter causas distintas (sociais, culturais, genéticas, econômicas, entre outras), contribuintes entre si, em maior ou menor grau a depender do caso.

Nesse contexto, pretendemos defender uma abordagem terapêutica também multifatorial, que alinhe, de forma tão individualizada quanto possível, o tratamento a cada uma das diversas causas envolvidas de maneira integrada. Como se verá, a abordagem multifatorial pressupõe - ou pelo menos é muito facilitada, por um tratamento por internação, de forma intensiva.

Assim, neste texto, vamos observar a constituição da obesidade como uma doença multifatorial com um grave impacto individual e coletivo e, partindo de tal pressuposto, defender a internação como melhor alternativa de abordagem terapêutica, principalmente considerando os resultados a longo prazo.

 

As causas multifatoriais da obesidade e a necessidade de um tratamento integrado

Procedimento comumente apontado como o mais indicado para tratamento da obesidade mórbida, a cirurgia bariátrica alcançou a marca de 68.530 realizações no Brasil apenas em 2019 (10). Por ser um procedimento cirúrgico e apresentar, a curto e até médio prazos, resultados na perda de peso, é considerada, por parte significativa dos pacientes, como um caminho supostamente “mais fácil” na cura da obesidade.

A análise mais próxima e cautelosa sobre os resultados e consequências da cirurgia bariátrica, entretanto, revela outras possíveis opiniões sobre o procedimento. Há de se considerar, inicialmente, a possibilidade de uma série de efeitos gastrintestinais no pós-operatório, como estenose da gastrojejunostomia, úlcera gástrica, fístulas gástricas, diarréia, vômitos, obstrução intestinal e deficiências nutricionais em ferro, vitamina B12, vitamina D e cálcio (ILIAS, 2007) (11).

Além disso, os próprios resultados do procedimento na perda de peso e consequente redução do IMC pode ser amplamente questionados quando ampliamos o olhar para o longo prazo. Revisão de literatura científica feita por Nery (2020) revela índices consideráveis de reganho de peso após a cirurgia bariátrica, demonstrando, a depender dos critérios e dos estudos utilizados como referência, até 59% de reganho a longo prazo, colocando em xeque a real eficácia da cirurgia bariátrica. (12)

Na nossa visão, a tão evidente ineficácia da cirurgia bariátrica a longo prazo ocorre pela desconsideração de uma premissa cada vez mais evidente na literatura médica: a obesidade é uma doença multifatorial, que, portanto, precisa ser tratada com uma abordagem igualmente multifatorial, requisito que a cirurgia bariátrica certamente não cumpre.

Há que se considerar, inicialmente, fatores genéticos, considerando que a literatura médica já “reconhece que o apetite e o comportamento alimentar sofrem influência genética e há indícios de que o componente genético atue sobre o gasto energético, notadamente sobre a taxa metabólica basal” (WANDERLEY; FERREIRA, 2010) (13). Segundo os mesmos autores, desordens endócrinas e mutações nos genes de hormônios e neuropeptídeos, principalmente aqueles ligados ao controle da ingestão alimentar, também têm sido associadas à obesidade. Assim, já começa a ficar claro que existem fatores estritamente individuais que pedem uma abordagem terapêutica mais cuidadosa e integrada em casos de obesidade.

Existem questões históricas e sociais da população em geral, considerando que, nas últimas décadas, a mecanização e mudança nas relações de trabalho, novos modos de lazer e alterações na tecnologia da indústria alimentícia levaram a modos de vida mais sedentários, ocupações laborais de menor demanda energética e alimentação progressivamente mais composta de alimentos refinados, processados, açúcares e gordura, e menos de fibras e carboidratos complexos (WANDERLEY; FERREIRA, 2010).

Muito importante na consideração da multifatorialidade da obesidade também são as questões socioeconômicas individuais, visto que na literatura médica comumente se observa uma relação direta entre pobreza e má qualidade da alimentação - consequentemente, entre pobreza e obesidade, como podemos observar em FERREIRA et al. (2010) (14) e diversos estudos de caso em grupos específicos, como os de SILVA et al. (2019) (15) e FERREIRA; MAGALHÃES (2005) (16). Pareceu-nos evidente, à análise de farto material relacionando pobreza e obesidade, que a falta de condições econômicas aliada à eventual, porém comum falta de conhecimento sobre saúde e alimentação em públicos de menor renda facilita uma alimentação inadequada, normalmente pobre em vitaminas e fibra alimentar e rica em gorduras e carboidratos, impactando diretamente na prevalência da obesidade.

Os fatores sociais da obesidade vão além da mera condição econômica. Estudo de Christakis e Fowler (2007) publicado no New England Journal of Medicine identifica a chance de obesidade de acordo com a presença de pessoas obesas no círculo de relações sociais de milhares de indivíduos pesquisados. Observou-se um impressionante aumento de 171% no risco de obesidade para pessoas que possuíam um amigo mútuo que se tornou obeso; o risco apresentou-se 40% maior para sujeitos com um irmão ou irmã que se tornou obeso, e o aumento de risco foi de 37% quando a pessoa relacionada era o cônjuge do pesquisado. Segundo os pesquisadores, a relação pode se dever a uma maior aceitação da obesidade pelos indivíduos ao ter alguém de relação próxima se tornado obeso ou então à influência comportamental sofrida pelos pesquisados, entre outras possíveis causas (CHRISTAKIS; FOWLER, 2007) (17).

Ainda se há de considerar os fatores psicológicos e psiquiátricos envolvidos com a obesidade. Debruçando-nos sobre o trabalho de Wanderley e Ferreira (2010), observamos que o transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP) - que consiste em episódios reincidentes de compulsão alimentar, ou seja, períodos nos quais se come grandes quantidades de alimento em curto espaço de tempo sem atividade compensatória - e a síndrome do comer noturno (SCN) - marcada pela anorexia matutina, hiperfagia vespertina e/ou noturna acompanhada de insônia - estão consideravelmente associados à população obesa, sendo fatores contribuintes para a obtenção, manutenção ou piora da obesidade. Em pessoas com obesidade, SCN e TCAP estão associadas a efeitos deletérios além do ganho de peso, como depressão, ansiedade, baixa auto-estima, e, no caso do TCAP, também transtornos de personalidade (WANDERLEY; FERREIRA, 2010).

É importante ressaltar que nenhuma cirurgia bariátrica pode resolver fatores ambientais, genéticos e psicológicos que compõem a causa do problema que a própria cirurgia pretende solucionar. Pelo contrário, o tratamento da obesidade precisa estudar as causas da doença em cada paciente a fim de ofertar a cada um, de maneira individualizada, o tratamento que melhor se adeque às suas necessidades, tratando causas além dos efeitos.

Nossa visão encontra consonância em parte da literatura especializada, a qual se volta progressivamente para a premente necessidade de abordagens multifatoriais na descoberta e tratamento realmente eficazes da obesidade. Consideramos que “os mecanismos metabólicos, psicológicos e sociais envolvidos na etiologia da obesidade são muito resistentes (...) e o seu tratamento envolve vários tipos de abordagens” (NICOLAU; ESPÍRITO SANTO; CHIBANTE, 2017). (18)

Assim é que, veementemente, defendemos um tratamento multifatorial, transdisciplinar, com diferentes especialidades de profissionais acompanhando, de forma integrada, o paciente: Educação Física, Nutrição, Psicologia, Medicina (em especializações como Cardiologia, Clínica, Endocrinologia, Psiquiatria, entre outras possíveis), Fisioterapia, Terapia Ocupacional e Enfermagem são algumas das possíveis áreas a trabalharem em conjunto no tratamento individualizado de cada paciente, descobrindo as causas específicas da obesidade em cada caso e propondo uma abordagem terapêutica consonante a cada realidade.

 

O tratamento por internação como melhor alternativa de abordagem multifatorial

 

Claramente exposta a necessidade de um tratamento transdisciplinar, multifatorial, para a obesidade, passemos ao seguinte ponto: qual seria a melhor maneira de levar a cabo tal abordagem e aumentar as chances de sua eficácia? Embora não exista tanta literatura especializada versando sobre as possíveis configurações de um tratamento global e integrado para a obesidade, propomos a internação como forma de atingir melhores resultados.

Nosso principal ponto de defesa da internação no tratamento da obesidade, especialmente a obesidade mórbida, é a necessidade - muito evidente em grande parte dos casos - de retirar o paciente do seu ambiente cotidiano para a garantia de melhores resultados. Tal necessidade se mostra devido à já mencionada associação de fatores ambientais como causa da obesidade, envolvendo o círculo de relações sociais do paciente, os hábitos alimentares de sua família, a eventual carga de estresse e ansiedade à qual é submetido nos ambientes da vida cotidiana, entre muitos outros fatores do dia-a-dia que podem estar - e até muito provavelmente estão - imbricados de maneira indelével nas origens da obesidade a ser tratada.

A retirada do paciente do seu ambiente de convívio cotidiano o afasta de muitas possíveis causas da sua obesidade e permite que, em isolamento parcial ou total num ambiente adequado, adira mais facilmente ao tratamento multidisciplinar que propomos. Como exemplos nos quais essa constatação nos parece mais evidente, temos a inúmera quantidade de pacientes que já tentaram diversas formas de tratamento ambulatorial, sem sucesso; pacientes que já realizaram a cirurgia bariátrica e reganharam o peso perdido (como vimos, após dois anos o índice de reganho de peso é de 95%); e também pacientes aos quais é contraindicada a própria cirurgia bariátrica.

Reiteramos a nossa visão da internação como alternativa mais eficaz de tratamento citando um importante estudo feito com a população usuária de um Centro de Obesidade Infantil (COI) em Campina Grande, na Paraíba, que fornecia, assim como propomos, abordagem terapêutica multidisciplinar - porém ambulatorial, sem internação. Grande parte dos usuários não deu continuidade ao tratamento proposto, ao que, entre outras considerações, os pesquisadores concluem:

A constatação de que uma considerável parcela dos pacientes cadastrados no COI desistiram de continuar o tratamento é preocupante. A dificuldade de adesão, o abandono ao tratamento (...) e a inexistência de um sistema eficaz para combate destas condições através da educação nutricional e do estímulo à atividade física agrava cada vez mais as condições de saúde dessas populações (MARIZ et al., 2016, grifo nosso). (19)

A adesão ao tratamento da obesidade é claramente mais difícil numa abordagem ambulatorial, a qual tem pouca eficácia em impedir a interferência dos mesmos fatores ambientais que causaram e/ou mantêm a obesidade. Podemos exemplificar com pacientes que sofrem com compulsão alimentar, casos nos quais a mitigação do impacto num momento de crise propriamente dita é inviável em tratamentos ambulatoriais, porém claramente viável caso o paciente se encontre internado numa instalação de saúde preparada para lidar com esse tipo de situação.

Enfim, por uma relação que apontamos como clara entre a eficácia do tratamento multidisciplinar e a necessidade de isolamento para aproximar o paciente da equipe terapêutica, facilitar sua adesão e afastá-lo de fatores ambientais negativos, corroborada em exemplo prático, reiteramos a defesa do tratamento clínico por internação como alternativa mais eficaz para o tratamento da obesidade, especialmente a obesidade mórbida.

 

Conclusão

Considerando os inúmeros efeitos deletérios da obesidade sobre o paciente, numa perspectiva individual, mas também sobre o sistema de saúde como um todo, é uma questão de saúde pública que se invista e conscientize a sociedade em geral sobre a necessidade de tratar a obesidade - especialmente a obesidade mórbida, que apresenta riscos à saúde muito mais altos -, e, considerando a relativamente baixa eficácia dos tratamentos comumente ofertados, como a cirurgia bariátrica e tratamentos clínicos convencionais, defendemos veementemente a alternativa do tratamento clínico intensivo por internação como caminho eficaz no diagnóstico e tratamento das causas e efeitos da obesidade de forma individualizada, completa e com resultados duradouros.

 

Dr. Sérgio de Queiroz Braga, diretor médico e responsável técnico da Clínica da Obesidade; médico endocrinologista e metabologista titulado pela SBEM - Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia; ex vice-presidente da SBEM - Bahia.

 

Referências

  1. https://www.who.int/en/news-room/fact-sheets/detail/obesity-and-overweight
  2. https://www.scielo.br/j/rbsmi/a/JTydYSwt4MQvWJzFJGV38hd/?lang=pt
  3. https://www.scielo.br/j/abc/a/CGgkDVsJxD9BJLMp5TYDjQD/?format=pdf&lang=pt
  4. https://static.scielo.org/scielobooks/rfdq6/pdf/anjos-9788575413449.pdf
  5. https://www.who.int/health-topics/obesity#tab=tab_1
  6. https://www.scielo.br/j/abem/a/nYYGZdLnj6WJVwTBNKGVHmj/?lang=pt#
  7. http://rmmg.org/artigo/detalhes/371
  8. https://iris.paho.org/handle/10665.2/51945
  9. https://www.scielo.br/j/abem/a/3Cbt6t3wrsSdS6LB3XqTTsS/?lang=pt
  10. https://medicinasa.com.br/cirurgia-bariatrica-brasil/
  11. https://www.scielo.br/j/ramb/a/mBMNJ4hL8Yg7y7V9rR8mtCg/?lang=pt
  12. https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&cad=rja&uact=8&ved=2ahUKEwi0ybSF37P3AhVCKBoKHbVYCK0QFnoECBgQAQ&url=https%3A%2F%2Festacio.periodicoscientificos.com.br%2Findex.php%2Fcienciaincenabahia%2Farticle%2Fdownload%2F23%2F19&usg=AOvVaw1LHhOigRU68XdfP1Qu79gs
  13. https://www.scielo.br/j/csc/a/cxTRrw3b5DJcFTcbp6YhCry/?lang=pt
  14. https://www.scielo.br/j/csc/a/TT9yPjBW5Ystk76MZRkXk5P/?lang=pt
  15. https://www.scielo.br/j/csp/a/9DTprfGr6BLMSLkMGqGvHcR/?lang=pt
  16. https://www.scielo.br/j/csp/a/BCLJ77qLRmdkDT39qLhC93p/?lang=pt
  17. https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/nejmsa066082
  18. http://scielo.sld.cu/pdf/enf/v33n2/enf18217.pdf
  19. http://www.scielo.org.co/scielo.php?pid=S0120-53072016000200018&script=sci_arttext&tlng=pt